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Além do binarismo: a Reforma do Século XVI, a Catolicidade e a Inteireza Anglicana

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“Nossa Igreja foi assentada na terra como uma tenda espiritual abrangente.”

(Roger Scruton - 1944–2020)


Em 31 de outubro de 1517, na véspera da Solenidade de Todos os Santos e Santas de Deus, Martinho Lutero — frade da Ordem de Santo Agostinho, teólogo, professor e pregador de profunda devoção — deu início a um movimento que transformaria, para sempre, o curso da Igreja e do mundo. Ao afixar suas noventa e cinco teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, ele não apenas propôs um debate acadêmico sobre doutrinas e teologia, mas acendeu uma chama que reacenderia o coração da cristandade. Aquilo que começara como uma busca por purificação espiritual tornou-se uma profunda renovação do imaginário, da fé e da cultura ocidental e ficou conhecida como Reforma Protestante.


Esse acontecimento extraordinário rapidamente ultrapassou as fronteiras da Alemanha e ecoou por toda a Europa, alcançando também as Ilhas Britânicas. No início, as ideias de Lutero e de outros reformadores não encontraram acolhida no trono inglês. No entanto, a partir de 1520, um pequeno grupo de acadêmicos da Universidade de Cambridge começou a reunir-se para refletir sobre as novas questões teológicas trazidas pela Reforma. Eram pessoas de oração e intelectuais, conhecidos por sua afinidade com a nova teologia — o que lhes valeu o apelido de “Pequena Alemanha” na Inglaterra.


Entre os que viriam a influenciar decisivamente a Reforma Inglesa estavam William Tyndale, Robert Barnes, Thomas Bilney e, sobretudo, Thomas Cranmer. Em 1532, Cranmer foi enviado à Alemanha como embaixador junto à corte do imperador Carlos V, com instruções para estabelecer contato com os príncipes luteranos. Em Nuremberg, encontrou Andreas Osiander, cuja teologia — situada entre a liberdade reformadora e a sabedoria da antiga ortodoxia — ajustava-se bem ao temperamento ponderado e conciliador de Cranmer.


Assim, em 1531, o rei Henrique VIII, movido por razões pessoais, econômicas, políticas e espirituais, rompeu com a autoridade papal, abrindo caminho para um novo capítulo na história da Ecclesia Anglicana — expressão já presente na Carta Magna de 1215. As ideias reformistas, aos poucos, penetraram o coração teológico da Inglaterra e inspiraram um movimento de reforma que não negou o passado, mas o purificou. A Igreja da Inglaterra não nasceu de uma ruptura, mas de uma fidelidade: foi reformada, sem deixar de ser católica; renovada, sem perder a substância sacramental e a continuidade apostólica; tornou-se, assim, uma Igreja Católica Nacional e Reformada.


A Reforma, portanto, não deve ser lembrada apenas como cisão, mas como redescoberta da fé. Ela transformou o cristianismo ocidental, chamando a Igreja a retornar às fontes do Evangelho, à simplicidade das Escrituras, à experiência viva de Cristo. Importa recordar que o público original de Lutero era composto inteiramente de católicos — homens e mulheres que, dentro da própria Igreja Católica Apostólica Romana, ansiavam por renovação e autenticidade. “As pessoas eram todas batizadas na fé católica”, dizia-se. O que emergiu ali não foi rejeição, mas um clamor pela integridade da fé.


Dessa busca nasceram as Igrejas Luteranas, Reformadas e Evangélicas — comunidades diversas que, de maneiras distintas, remontam àquele mesmo sopro espiritual iniciado em Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.


Católica para toda a verdade de Deus e protestante contra todos os erros humanos. (Livro de Oração Comum da IEAB (1930)


Nós, Episcopais Anglicanos, reconhecemos o imenso valor da reforma protestante e a herança espiritual que ela nos legou. Em nosso calendário litúrgico (LOC/IEAB), celebramos o Dia da Reforma não como um memorial distante, mas como um convite à conversão contínua do coração e à renovação da fé. Honramos a memória de Lutero, Calvino e de todas as mulheres e homens que, movidos pelo Espírito, cooperaram para a edificação da Igreja de Cristo.


Com frequência, em encontros ecumênicos ou mesmo em outros contextos sociais, as pessoas me perguntam o que é o anglicanismo. Não raramente, associam-no à figura do rei Henrique VIII, como se nossa história começasse num gesto de ruptura política ou num episódio de rebeldia religiosa. No entanto, a verdade é mais profunda e mais bela. Essa associação histórica é compreensível, mas não esgota e nem define, a identidade da nossa Igreja.


Habitualmente encontramos em textos de autoras e autores anglicanos a descrição de nossa Igreja como católica e reformada, ou, em outras palavras, católica e evangélica, e, às vezes, católica e protestante. Contudo, essas expressões exigem um olhar atento, cheio de discernimento e memória. Elas não são meros rótulos teológicos, mas janelas para uma identidade construída na tensão criativa entre tradição e renovação.


Por exemplo, quando dizemos ser “reformados” ou “protestantes”, não queremos dizer que seguimos as teologias de Lutero ou Calvino. Significa, que reconhecemos na Reforma Protestante do século XVI um movimento, um sopro do Espírito Santo que chamou a Igreja Ocidental à fidelidade às Escrituras e à integridade do Evangelho.


Quando afirmamos ser “católicos”, não nos referimos à obediência a Igreja de Roma, mas à nossa pertença à Igreja una, santa, católica e apostólica de Cristo — a comunhão de todos os séculos, que confessa a fé transmitida pelos apóstolos e preservada nos credos ecumênicos. Essa catolicidade é, antes de tudo, um modo de ser: permanecer enraizados na fé antiga, guardando a mesma sucessão episcopal histórica, celebrando os mesmos sacramentos e professando os mesmos Credos ecumênicos: Niceno, Credo Apostólico e o Credo Atanasiano.


Essa consciência de catolicidade enraizada e aberta fez do anglicanismo uma tradição singular: profundamente ligada à Igreja Católica de todos os tempos e, ao mesmo tempo, receptiva às verdades que emergiram da Reforma Protestante no continente europeu. Assim, poderíamos dizer que as Igrejas da Comunhão Anglicana vivem num ponto de tensão fecunda — não totalmente “católica para Roma”, nem “protestante o bastante” para os evangélicos —, mas fiel ao chamado de Cristo para ser ponte e comunhão, testemunha de unidade no coração das diferenças.


A catolicidade anglicana, portanto, não é uma categoria de poder, ruptura ou exclusão. Não se trata de escolher entre ser católico ou protestante. O anglicanismo é, antes, uma vocação de reconciliação — um caminho de síntese que busca manter unidas, no mesmo corpo, a memória e a esperança, a fidelidade às raízes e a abertura ao futuro. Ele abraça a tradição apostólica dos pais e mães da Igreja, os primeiros concílios e o testemunho vivo da Reforma que, ao soprar sobre o Ocidente, reacendeu o amor pela Escritura, pela liberdade e pela razão iluminada pela fé. Assim, a Igreja Anglicana se reconhece como um espaço onde o altar e o púlpito respiram juntos: a oração e a Palavra, os sacramentos e a pregação, a contemplação e o engajamento com o mundo. Nesse equilíbrio, a catolicidade deixa de ser uma fronteira para se tornar um horizonte — o lugar onde a graça reconcilia o que o tempo separou.


"O justo viverá pela fé" (Romanos 1.17).


Pessoalmente, escolhi o Dia da Reforma para ser instalado como o 7º Bispo Diocesano da Diocese Anglicana de São Paulo (DASP–IEAB). Em 31 de outubro de 2021, no templo da Paróquia de São João, em Pinheiros, São Paulo, durante a celebração da Santa Eucaristia, recebi das mãos do então bispo diocesano, Revmo. Flávio Irala, o Báculo Episcopal, sendo instalado com as orações da Igreja e a bênção do então bispo primaz, Sua Graça Naudal Alves Gomes, que presidiu a celebração eucarística. Na ministração da Santa Comunhão, entoamos o “hino oficial da Reforma” — Castelo Forte é Nosso Deus, na versão do Hinário Episcopal da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.


Creio que, para a maioria dos Episcopais Anglicanos, celebrar a Reforma é reconhecer que a mesma Divina Ruah, o Espírito Santo de amor que soprou em Wittenberg, continua a soprar sobre nós — chamando a Igreja a permanecer fiel ao Evangelho, plenamente católica, aberta à verdade, renovada pela graça e comprometida com a vida em Cristo.


Profundamente influenciados — e de modo benéfico — pelos movimentos da Reforma luterana e calvinista do século XVI, nós, anglicanos, não nos definimos como uma igreja protestante no mesmo sentido das comunidades nascidas daqueles movimentos. A tradição anglicana reconhece suas origens na antiga Ecclesia Anglicana, a Igreja das Ilhas Britânicas anterior à cisão romana. Mantemos viva a herança apostólica: o episcopado em sucessão histórica, os sacramentos, a liturgia — porque cremos que a Igreja é verdadeiramente “católica”, isto é, parte da única Igreja de Deus ao longo de toda a história e em toda a terra.


Entre a Reforma e a Catolicidade, o caminho da inteireza anglicana


A catolicidade da Igreja, como ensinava o saudoso e querido professor Rev. Jaci Maraschin, em seu livro recém-republicado O Espelho e a Transparência — editado em memória de seu ministério fecundo, por ocasião de seu nonagésimo quinto aniversário e da celebração dos 1700 anos do Concílio Ecumênico de Niceia —, “significa a fidelidade da Igreja à totalidade da vida redimida trazida por Jesus Cristo”. O termo católico exprime, de um lado, a universalidade e a amplitude da fé cristã; de outro, a sua integridade interior — a plenitude do ser humano reconciliado em Cristo. Assim, quando professamos no Credo que a Igreja é católica, afirmamos que nela se manifesta a possibilidade real de uma humanidade plenamente redimida, restaurada à sua vocação divina e revelada em Jesus, o Cristo, plenitude da vida de Deus no mundo.


Ao mesmo tempo, afirmamos ser “católicos” — porque permanecemos enraizados na fé una, santa, católica e apostólica, herdeiros da tradição viva que sustenta a Igreja de todos os séculos, reconhecendo que nossa identidade brota dessa continuidade sagrada, na qual a memória da fé não é um peso do passado, mas o solo fecundo onde o Espírito semeia sempre o novo — e declaramos ser também “reformados”, porque cremos que a vida da Igreja Católica de Cristo deve permanecer em contínua conversão e crescimento espiritual, sempre renovada pela Palavra, pela Tradição e pela experiência da graça. Essa vocação permanente à renovação, expressa no princípio Ecclesia reformata, semper reformanda, recorda-nos que a verdadeira reforma não é ruptura, mas fidelidade viva ao Evangelho e à Catolicidade da Igreja: um retorno constante às fontes da fé, à integridade do Evangelho e à comunhão apostólica, no qual a Igreja se reconhece como corpo que, guiado pela Ruah Divina, é continuamente purificado, despertado e vivificado no amor de Cristo.


Ser uma Igreja Católica Reformada é, portanto, viver o paradoxo fecundo da fidelidade e da liberdade: permanecer firmes na Tradição e, ao mesmo tempo, abertos ao sopro criador da Ruah Divina, que continuamente reforma, purifica e vivifica o corpo de Cristo, conduzindo-o de volta ao coração do Evangelho. É reconhecer que o Espírito não apenas conserva, mas também transforma — não para negar o que foi, mas para revelar o que sempre esteve latente na verdade do amor.


Assim, o chamado à reforma é também um chamado à plenitude — àquilo que o teólogo Jaci Maraschin, tão belamente descreveu como “a totalidade da vida redimida trazida por Jesus Cristo”. Nesse horizonte, a Igreja Católica de Cristo não é um monumento imóvel, mas um sinal vivo da graça e da verdade de Deus no mundo: uma comunidade que, fiel à sua substância católica e aberta à contínua reforma, torna-se sacramento do Reino — lugar onde a humanidade é reconciliada, curada e transformada em Cristo.


Impacto dos Movimentos de Reforma na Formação do Anglicanismo


É inegável a importância e a influência fecunda da Reforma do século XVI no desenvolvimento do anglicanismo e, mais amplamente, na formação espiritual e cultural do Ocidente cristão. Como recorda Justin Welby, 105º Arcebispo de Cantuária (2013–2024), “por meio da Reforma, o mundo mudou; o Evangelho se espalhou; e a Contrarreforma Católica Romana renovou os lugares que a Reforma Protestante não alcançou.”


Entretanto, para John Cosin (1594–1672), Bispo de Durham e notável teólogo do período carolino, essa herança reformadora não significava que a Igreja da Inglaterra devesse ser compreendida como uma mera expressão protestante entre outras. Em sua obra clássica A Religião, Disciplina e Ritos da Igreja Anglicana, Cosin afirma com clareza:


“Não somos nem calvinistas nem luteranos. A acusação de que somos luteranos e calvinistas é infundada.”


Com reverência e equilíbrio, ele reconhece os dons singulares de Lutero e Calvino — instrumentos de luz em tempos de sombras —, mas sublinha que o discernimento da Igreja deve permanecer ancorado nas Escrituras e no testemunho dos Santos Padres antigos:


“Lutero foi um homem de grande aptidão, e Deus lhe concedeu dons notáveis... mas ele não era infalível, nem aceitamos suas afirmações senão quando apoiadas pela Palavra de Deus e pelo testemunho da Antiguidade. Calvino também se sobressai merecidamente... mas nenhum de nós o toma por mestre. Não somos mais seguidores de Lutero ou de Calvino do que do Papa, ou de qualquer outro que se afaste da Sagrada Escritura, ou que deixe de andar nos passos dos antigos Padres que consentem na fé católica.”


Com essas palavras, o bispo e teólogo Cosin delineia um dos eixos centrais da identidade anglicana: uma Igreja essencialmente católica, que se reconhece reformada/protestante não por ruptura, mas por purificação e fidelidade. O anglicanismo, tal como se configurou, não nasceu da negação, mas da continuidade transformadora — fidelidade à fé una, santa, católica e apostólica, que ousou renovar-se à luz do Evangelho.


A Reforma inglesa não destruiu o edifício da fé; restaurou-o sobre os alicerces da Escritura, da Tradição e da razão iluminada pelo Espírito Santo. Foi um ato de conversão e de purificação, uma reforma do coração e da mente eclesial. Nesse processo, a Igreja da Inglaterra foi sendo enriquecida e amadurecida, assumindo-se como uma comunhão que une o antigo e o novo, o católico e o reformado, a ortodoxia e a liberdade no Espírito. Para o anglicanismo, a Reforma não significou um corte com o passado, mas o reencontro com a própria catolicidade em sua forma mais viva e esperançosa.


Continuidade Histórica e Fé Católica


É oportuno lembrar o testemunho da Rainha Elizabeth I, cuja fé moldou uma era e ofereceu à Igreja inglesa um caminho de equilíbrio e prudência espiritual. Em 1563, escrevendo ao imperador Fernando da Alemanha, ela declarou — com a linguagem da época, mas com clareza atemporal:


“Nós não seguimos nenhuma religião nova ou estranha, senão a mesma religião que Cristo ordenou, que sancionou a Igreja primitiva e católica, e que aprovam a mente e a voz dos pais mais antigos.” (A History of the Church of England)


O historiador Stephen Neill observa que, ao final do reinado de Elizabeth I, a Igreja da Inglaterra havia preservado a fé católica conforme estabelecida nas Escrituras, nos credos e nas decisões dos quatro primeiros Concílios Ecumênicos. Restaurou a supremacia das Sagradas Escrituras em toda questão de doutrina e conduta; devolveu ao culto a dignidade da língua compreensível ao povo; e manteve, em meio às perturbações de seu tempo, a continuidade do culto e da oração — sem interrupção de um só dia. (Stephen Neill – El Anglicanismo)


Contribuição dos Teólogos Elizabethanos e Carolinos


Entre os grandes teólogos do período elizabetano, John Jewel (1522–1571) ocupa lugar singular. Nascido em Buden, Devon, e formado em Oxford, atravessou o exílio sob Maria I — vivendo em Frankfurt, Estrasburgo e Zurique — e regressou com Elizabeth I, sendo sagrado bispo de Salisbury em 1560. Desde então, dedicou-se a afirmar, com rigor bíblico e patrístico, que a Igreja na Inglaterra permanecia a mesma Igreja de sempre — a Igreja católica presente no país desde os tempos apostólicos — passando por um processo de reforma, não de fundação.


Jewel escreveu em latim a Apologia Ecclesiae Anglicanae (1562) para defender a Igreja da Inglaterra recém-reformada — não uma igreja “nova”, mas a mesma Igreja católica no país, purificada à luz das fontes primordiais: Escritura, credos ecumênicos, os pais apostólicos e consensos dos primeiros séculos da Igreja de Cristo. Ele sublinha que a reforma inglesa foi discernida “em concílio” próprio — Parlamento, sínodo e assembleias — com os bispos, clero e laicato envolvidos, ao contrário do Concilio Trento, cuja pretensão ele questiona: “Mas por que razão excluem os reis cristãos e os bons príncipes de sua convocação?” (Apologia). O método é claro: catolicidade comprovada pela Palavra de Deus e pelo consenso antigo, não por mera submissão institucional.


À pergunta polêmica — “Onde estava a vossa Igreja antes de Lutero e Calvino?” — Jewel responde com continuidade e purificação apostólica: a Igreja na Inglaterra estava onde sempre esteve, na comunhão da fé católica, e foi reformada em conformidade com a Palavra de Deus. Seus sucessores reforçam esse horizonte: Richard Hooker consolidará a leitura da Escritura com a razão e a tradição.


Dessa resposta nasce a autocompreensão anglicana: uma catolicidade fundada na pureza apostólica, não no poder de uma única sede; uma unidade que se reconhece em comunhão espiritual com outras Igrejas Reformadas e em continuidade com a Igreja una, santa, católica e apostólica. Por isso, o anglicanismo pode afirmar-se, sem contradição, católico em substância, reformado em espírito e ecumênico em vocação — reforma sem ruptura, fidelidade às fontes, e uma comunhão que respira tradição, discernimento e esperança.


Entre os teólogos elizabetanos, destaca-se Richard Hooker, discípulo do bispo John Jewel. Herdou do mestre o apreço pelos Santos Padres da Igreja e a arte espiritual de manter, com serenidade e clareza, a tensão criativa entre Escritura, Tradição e Razão. Em Hooker, a Reforma da Igreja da Inglaterra nunca aparece como ruptura, mas como um retorno paciente à Palavra de Deus e ao consenso da fé antiga. Seu pensamento é marcado por uma confiança tranquila: a verdade não precisa destruir para renovar; ela se purifica voltando às suas fontes. Daí a sua afirmação, que se tornou emblema da continuidade anglicana:“Na Igreja nós estávamos e ainda estamos.” (Richard Hooker)


Essa convicção é mais que um enunciado histórico — é uma confissão de fé. Significa reconhecer que a Igreja da Inglaterra jamais se percebeu fora da comunhão católica, mas dentro dela: parte viva da única Igreja de Deus, guardando o ministério episcopal em sucessão histórica, os sacramentos e os credos ecumênicos — Niceno, Apostólico e Atanasiano — como expressão da fé una que atravessa os séculos.


Para Hooker, e para toda a tradição que o seguiu, a fidelidade à Igreja antiga não é nostalgia, mas esperança: é o movimento de um corpo que, ao recordar suas origens, reencontra o sopro do Espírito que o anima. A eclesiologia anglicana, nascida dessa consciência, pode dizer com serenidade e firmeza que permanece onde sempre esteve — na Igreja una, santa, católica e apostólica — continuamente reformando-se para ser mais fiel ao Evangelho que a gerou.


John Moorman, em sua obra clássica A History of the Church of England, confirma que, para aqueles que moldavam o destino espiritual da Inglaterra, não havia sentimento de ruptura. A Igreja inglesa era e continuava sendo parte da Igreja Católica, embora tivesse rejeitado a jurisdição papal. Era católica em sua substância e reformada em sua expressão. Suas raízes mergulhavam na Igreja primitiva; suas reformas — genuínas e necessárias — purificaram a vida e o culto, sem quebrar a continuidade da fé.


As reformas litúrgicas do período — a introdução do vernáculo na liturgia, a comunhão sob ambas as espécies, a liberdade do clero para contrair matrimônio — não representaram abandono da tradição, mas retorno à sua autenticidade evangélica.


O mesmo espírito habita os teólogos carolinos do século XVII, como Thomas Ken, bispo e teólogo de vida santa, que afirmou ao final de seus dias:


“Morro na fé santa, católica e apostólica, professada por toda a Igreja antes de toda a desunião do Oriente e do Ocidente. Mas, particularmente, morro na comunhão da Igreja da Inglaterra, tal como ela se apresenta, distinta de todas as inovações papais e puritanas, e fiel à doutrina da Cruz.” (John Moorman – A History of the Church of England)


Entre as figuras mais luminosas do pós-Reforma inglesa, Lancelot Andrewes (1555–1626), bispo, pregador, teólogo de espírito patrístico e, ao mesmo tempo, artesão da reforma litúrgica e tradutor das Escrituras, é uma das vozes mais claras da catolicidade reformada que moldou o coração do anglicanismo. Seu pensamento não se prende a escolas ou rótulos: ele respira a liberdade da fé que sabe unir o antigo e o novo, a reverência e o intelecto, a oração e a razão.


Nos seus sermões e Preces Privadas, Andrewes expressa a convicção de que a verdadeira reforma não nasce do cisma, mas da purificação interior da Igreja. Sua regra de fé — “um cânone, dois testamentos, três credos, quatro concílios gerais e cinco séculos” — resume uma eclesiologia de fidelidade e amplitude: a Escritura como fundamento, os credos como confissão, os concílios e os Padres como bússola de comunhão.


Em Andrewes, a catolicidade não é domínio nem nostalgia; é uma forma de liberdade reconciliadora. Ele pode honrar os Padres Apostólicos e admirar Calvino; venerar a Bem- aventurada Virgem Maria e afirmar a justificação pela fé. Sua vida teológica mostra que a Igreja não se define por exclusões, mas pela contínua busca da inteireza — uma Igreja que permanece una, santa, católica e apostólica, precisamente porque se deixa reformar pela Palavra e renovar pelo Espírito.


No pensamento de Andrewes, o anglicanismo encontra o seu centro silencioso: a fé que não precisa escolher entre o altar e o púlpito, entre a Tradição e a Reforma — pois sabe que ambas se inclinam diante do mesmo mistério de Cristo.


Essa compreensão era partilhada por elizabetanos, carolinos e pelos chamados nonjurors. Todos beberam da mesma fonte: a Tradição Patrística da Igreja primitiva. Encontraram nela não apenas inspiração doutrinal, mas um modo de ser Igreja — uma vida moldada pela oração, pelo sacramento e pela fidelidade à fé dos primeiros séculos.


O próprio John Cosin, em sua Apologia pela Igreja da Inglaterra, resume o princípio que norteou essa continuidade:


“Após a Escritura, temos como autoridades os três Credos Ecumênicos, os quatro primeiros Concílios, os cinco primeiros séculos e o consenso dos Pais Católicos durante esse período.” (A Religião da Igreja Anglicana)


Essa é, talvez, a mais bela expressão da alma anglicana: uma Igreja que, reformada, permanece católica; e que, sendo católica, reconhece a necessidade permanente de reforma — fiel à Escritura, enraizada na Tradição e aberta ao sopro livre do Espírito.


Influências Teológicas do Movimento de Oxford


O Movimento de Oxford, também conhecido como Tractarianismo, floresceu na Inglaterra do século XIX como expressão vigorosa da tradição High Church dentro da Igreja Anglicana. Inspirados pela beleza dos sacramentos e pela profundidade da tradição católica, teólogos como São John Henry Newman, John Keble e Edward Bouverie Pusey procuraram reacender, no coração do anglicanismo, a chama da fé e da espiritualidade. Sua intenção não era criar uma nova doutrina, mas reafirmar a via media — o caminho de equilíbrio entre o catolicismo romano e o protestantismo reformado, onde a graça e a razão, o mistério e a fé, a tradição e a liberdade se entrelaçam.


Embora a maioria dos seus membros pertencesse à chamada “igreja alta”, o Movimento de Oxford ultrapassou rótulos e marcou profundamente a vida teológica, litúrgica e pastoral da Igreja. Seus pensadores não inventaram nada de inédito: antes, restauraram o que estava adormecido, alargando e fortalecendo a consciência católica e espiritual já viva nos teólogos elizabetanos, carolinos e nonjurors.


O contexto histórico também favoreceu esse florescimento. No século XIX, a distância dos conflitos que marcaram a Reforma Protestante e o movimento puritano permitiu à teologia respirar com liberdade. Assim, foi possível recuperar práticas devocionais e litúrgicas inspiradas na Igreja Primitiva e na Tradição Patrística, promovendo ao mesmo tempo um renovado impulso missionário, diaconal e o restabelecimento da vida monástica e das ordens religiosas — tanto femininas quanto masculinas — no seio da Igreja da Inglaterra e na Comunhão Anglicana.


Desse contexto brotou o movimento anglo-católico, que uniu contemplação e ação, oração, serviço e evangelização. Ele soube combinar o amor pela liturgia com o compromisso social, levando o Evangelho às periferias, onde o sofrimento humano clama por dignidade. Sua teologia era encarnada e sua prática, pastoral; sua espiritualidade, missionária e solidária. Por meio dessa síntese entre adoração e justiça, o movimento contribuiu decisivamente para a expansão e vitalidade do anglicanismo no mundo.


Assim, ao afirmarmos o valor e a importância da Reforma do século XVI na formação da nossa identidade episcopal anglicana, reafirmamos também o nosso vínculo histórico, permanente e inquebrantável com a Igreja Católica e Apostólica de Cristo. Somos, por natureza e vocação, “uma Igreja católica, que é e deve ser continuamente reformada”. E declaramos com humildade e convicção: somos uma Igreja “católica para toda a verdade de Deus e protestante contra todos os erros”. (LOC/IEAB, 1930)


Católico Reformado


Na Conferência de Lambeth de 2022, o episcopado da Comunhão Anglicana, reunido em Cantuária, reafirmou que a natureza do anglicanismo é, portanto, católica-reformada:


“A tradição Anglicana tem as suas raízes numa história compartilhada comprometida com a catolicidade, a reforma, a missão internacional e o testemunho intercultural. Nossa unidade e esperança por uma unidade Cristã mais profunda são expressas no Quadrilátero Chicago-Lambeth: i. A Sagrada Escritura do Antigo e do Novo Testamento, como “contendo todas as coisas necessárias para a salvação”, e como sendo a regra e o padrão final de fé. ii. O Credo Apostólico, como Símbolo Batismal; e o Credo Niceno-Constantinopolitano, como declaração suficiente da fé cristã. iii. Os dois Sacramentos ordenados pelo próprio Cristo - Batismo e Ceia do Senhor - ministrados com uso infalível das palavras de instituição de Cristo e dos elementos ordenados por Ele. iv. O Episcopado Histórico, localmente adaptado nos métodos de sua administração às diversas necessidades das nações e povos chamados por Deus para a Unidade da Sua Igreja.” (CHAMADO DE LAMBETH - IDENTIDADE ANGLICANA)


Desse modo, a tradição anglicana enraíza-se numa história partilhada e num compromisso profundo com a catolicidade, a reforma, a missão internacional e o testemunho intercultural. Nossa unidade — e nossa esperança por uma unidade cristã mais plena — encontra expressão no Quadrilátero Chicago-Lambeth, que permanece como farol teológico e ecumênico para toda a Comunhão.


É importante lembrar que a identidade católica reformada não nasceu com o movimento anglo-católico do século XIX. Suas raízes remontam ao século XVI, possivelmente ao teólogo William Perkins (1558–1602), clérigo da Igreja da Inglaterra no reinado de Elizabeth I e uma das figuras mais influentes do puritanismo inglês. Foi ele quem cunhou o termo Reformed Catholick — “Católico Reformado” — para descrever a natureza da Igreja que então emergia sob o arranjo eclesial elizabetano.


Perkins escreveu que, ao definir-se como católica reformada, a Igreja da Inglaterra pretendia mostrar que a Reforma não destruiu a catolicidade, mas a purificou. “A Igreja Reformada é a verdadeira Igreja Católica”, dizia ele, “e Roma é que se afastou das doutrinas essenciais do cristianismo histórico.” Em 1598, publicou seu tratado A Reformed Catholike, argumentando que a verdadeira identidade reformada era, precisamente, uma catolicidade renovada.


Reconhecido como o primeiro teólogo inglês a ter influência maior que a de Calvino, Perkins deixou uma marca profunda não apenas na Inglaterra, mas também na Europa e na América. Era reformado — um puritano de alma —, mas acreditava que a purificação da Igreja não exigia a rejeição de sua liturgia, de seus meios de discipulado nem de sua forma de governo. Antes, tratava-se de refiná-los. Como ele escreveu:


“Por católico reformado, entendo alguém que sustenta os mesmos fundamentos necessários da religião da Igreja Romana; todavia, rejeita todos os erros doutrinários pelos quais essa religião se corrompeu.” (Michael Allen e Scott R. Swain – Catolicidade Reformada, Editora Monergismo)


Essa mesma compreensão ressoa ainda hoje. Como recordam Allen e Swain, o termo “católico” remete à confissão do Credo Apostólico — creio na santa Igreja católica —, uma Igreja que é universal não por seus méritos, mas por sua origem em Cristo, fundada sobre o ensino dos apóstolos. Ser católico-reformado, portanto, não é adotar uma identidade híbrida, mas permanecer fiel à única Igreja de Deus que é, ao mesmo tempo, una, santa, católica e apostólica.


A obra de Perkins surgiu num contexto de controvérsias e guerras religiosas. Hoje, mais de quatro séculos depois, ela continua a nos convidar a compreender o espírito da Reforma não como ruptura, mas como continuidade criadora. E, à luz dos teólogos elizabetanos e carolinos, ela amplia o nosso horizonte identitário: somos herdeiros de uma fé antiga, que se renova sem perder a substância.


Perspectivas de Lideranças Anglicanas do século XX


O revmo. George Carey, Arcebispo de Cantuária de 1991 a 2002, teólogo formado na tradição evangélica da Igreja da Inglaterra e muito respeitado entre seus pares, observou que a Reforma, para os anglicanos, não foi tragédia, mas redescoberta: redescoberta da autoridade das Escrituras, da centralidade da justificação pela fé, do valor da Igreja local e do ministério de todo o povo de Deus. “Por certo”, disse ele, “todas essas coisas estavam na Igreja antiga, mas era preciso que fossem redescobertas.”


Em 1999, durante sua visita fraterna à Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, o Arcebispo Carey participou, em São Paulo, de um encontro com lideranças do movimento ecumênico na Casa da Reconciliação. Entre os presentes estavam o então cardeal de São Paulo, Dom Cláudio Hummes, bispos ortodoxos, pastores de diversas tradições protestantes, bispos, clérigos e lideranças do laicato da IEAB.


Naquela ocasião, enquanto membro da Comissão de Dialogo Católica-Anglicana (CONAC), fui testemunha de suas palavras. Ao refletir sobre o anglicanismo, a Igreja da Inglaterra e a Comunhão Anglicana, ele recorreu a uma metáfora simples e luminosa — uma imagem de rara beleza e clareza — para expressar, com profundidade espiritual e precisão teológica, o que, de fato, aconteceu durante a Reforma.


“Os anglicanos pegaram o bebê sujo e lhe deram um banho; depois tiraram o bebê da banheira, jogaram fora a água suja e ficaram com o bebê. Outros reformados, ao jogarem fora a água, deixaram o bebê junto.”


Com essa imagem, o Arcebispo George Carey, expressou a essência da via media: uma tradição que soube preservar o essencial da fé cristã católica, purificando excessos e renovando-se sem romper com suas raízes. Sua metáfora continua a ecoar como lembrete da vocação anglicana de unir razão e fé, tradição e renovação, graça e liberdade — uma fé que respira equilíbrio, humanidade e esperança.


Ele também, naquela ocasião, diante da liderança ecumênica reunida em São Paulo, sublinhou a continuidade histórica da Igreja da Inglaterra, recordando que a mais antiga paróquia inglesa, a Paróquia de São Martinho, situada no território canônico da Diocese de Cantuária, permanece, desde o século VI, como um lugar ininterrupto de louvor e adoração.


Durante a Conferência de Lambeth de 2022 e, posteriormente, no curso para novos bispos e bispas da Comunhão Anglicana em Cantuária em 2023, tive o privilégio de visitar essa singela igreja de São Martinho e de ali rezar — em silêncio e gratidão — unindo-me à comunhão de todas as gerações que, antes de nós, elevaram suas preces naquele espaço sagrado.


Esse continuum de fé e oração encontra sua expressão mais ampla na própria Sé de Cantuária, onde uma sucessão episcopal inquebrantável, que remonta a Santo Agostinho de Cantuária, mantém viva a chama da Apostolicidade e da presença contínua do Espírito Santo na Igreja ao longo dos séculos.


O Arcebispo Geoffrey Fisher (1887–1972), que serviu como Arcebispo de Cantuária de 1945 a 1961, foi outra figura marcante na história moderna da Comunhão Anglicana e do movimento ecumênico. Identificado teologicamente com a ala evangélica do anglicanismo, Fisher afirmava com clareza: “Não temos doutrina própria. Possuímos apenas a doutrina católica da Igreja Católica, preservada nos Credos Católicos, e esses credos mantemos sem acréscimos nem diminuições. Permanecemos firmes sobre essa rocha.” Para o arcebispo Fisher, a Comunhão Anglicana não tem um credo particular nem uma teologia exclusiva, mas partilha a fé católica da Igreja antiga, expressa nas Escrituras, nos credos e no ministério apostólico.


Homem profundamente devotado à unidade dos cristãos, ele foi o primeiro Arcebispo de Cantuária, desde a Reforma protestante, a visitar um Papa. Em 1960, encontrou-se com João XXIII, em um gesto histórico — não oficial, mas profético — que simbolizou a reabertura de pontes entre Roma e Cantuária. Sua vida e ministério encarnaram a vocação ecumênica e católico-reformada do anglicanismo: uma fé enraizada na Tradição, fiel às Escrituras e aberta ao sopro do Espírito que faz novas todas as coisas.


Alguns anos depois, em 1962, o Arcebispo Michael Ramsey (1904–1988), pregando na Igreja da Trindade e na Catedral de São João, o Teólogo, em Nova York, ofereceu talvez a mais bela síntese do espírito anglicano:


“A Comunhão Anglicana é apenas uma parte da Igreja Católica — simplesmente a fé primitiva, católica e apostólica, incorporada nas Escrituras, nos credos, nos sacramentos e no ministério apostólico de bispos, sacerdotes e diáconos. Um ministério católico e um vínculo de continuidade e unidade ao longo dos tempos e em todo o mundo. Servindo a Cristo lealmente nesta Comunhão onde Ele nos colocou, aproximamo-nos de ambos os lados, buscando construir a unidade da única Igreja Católica.”


Por isso, mais do que chamá-lo de “protestante”, é justo afirmar: o anglicanismo é católico e reformado. Católico, porque reconhece-se parte da única Igreja de Deus, guardando o ministério episcopal como sinal de unidade; reformado, porque partilha dos princípios evangélicos que redescobriram o poder libertador do Evangelho.


E vale recordar — como já mencionado — que, muito antes da Reforma, a Carta Magna da Inglaterra (1215) já mencionava a Ecclesia Anglicana, testemunhando que a identidade da Igreja inglesa antecede os eventos do século XVI. Essa continuidade viva é parte essencial da vocação do anglicanismo: reformar-se sem romper, renovar-se sem esquecer, permanecer católica enquanto se deixa sempre reformar pela graça.


Na mesma direção, o Bispo Sumio Takatsu, teólogo brasileiro profundamente enraizado na tradição anglicana, retoma o mesmo princípio de continuidade. Em seu ensaio “Os Começos do Anglicanismo”, o bispo Takatsu observa que a apologia anglicana da continuidade revela a verdadeira natureza da Reforma inglesa: não uma ruptura, mas um gesto de fidelidade às origens apostólicas da Igreja. Ele escreve com a clareza teológica de quem ama a Tradição da Igreja e a serenidade de quem a compreende:


“Ao fazer a Reforma, os principais teólogos e líderes da Igreja da Inglaterra não pensaram em ter fundado uma outra Igreja. Essa era, também, a visão dos reformadores do continente europeu. Houve muitos estudos da história e da patrística entre os reformadores no continente e na Inglaterra. Mathew Parker, Arcebispo de Cantuária, escreveu sobre a Antiguidade da Igreja Britânica.” (Sumio Takatsu)


Na leitura de Takatsu, a Reforma anglicana não emerge como um movimento de negação, mas como um esforço para redescobrir a plenitude da fé que sempre esteve presente na Igreja Inglesa. O que motivou teólogos como Jewel, Parker e Hooker não foi o desejo de inovar, mas o de restaurar: reencontrar a Igreja una, santa, católica e apostólica na sua forma mais fiel às Escrituras, aos Padres Apostólicos e os primeiros Concílios da Igreja.


Ecumenismo e Identidade Católica-Reformada do Anglicanismo


No movimento ecumênico, é essencial que cada Igreja tenha liberdade para dizer quem é e como se compreende. É nesse horizonte que afirmamos: há católicos que reconhecem a jurisdição universal do Bispo de Roma e, por isso, são chamados de católicos romanos. Há também católicos que não a reconhecem ou não acolhem certos pontos doutrinais da Igreja Romana; muitos são chamados de católicos reformados. Dizer isso não nos torna melhores nem piores do que as demais Igrejas de matriz protestante ou católica. Apenas declaramos que, de modo geral, os Episcopais Anglicanos se reconhecem como Igreja Católica Reformada.


Ao longo do século passado, diversas Igrejas da Comunhão Anglicana estabeleceram plena comunhão com outras Igrejas cristãs. Em nível global, a Comunhão mantém plena comunhão com as Antigas Igrejas Católicas da União de Utrecht, com a Igreja Independente das Filipinas e com a Igreja Mar Thoma. Em âmbitos regionais, há acordos de plena comunhão com Igrejas Luteranas, Metodistas e Morávias, além de múltiplos diálogos bilaterais em curso. Fruto desse caminho, surgiram também Igrejas Unidas dentro da própria Comunhão Anglicana (Igreja do Norte da Índia, Igreja do Sul da Índia, Igreja do Paquistão e Igreja de Bangladesh). Tais relações são de dupla via: uma verdadeira partilha de dons que alarga a nossa identidade e adensa a nossa catolicidade.


A participação das Igrejas da Comunhão Anglicana nos grandes movimentos de renovação do século XX — o movimento litúrgico e o movimento ecumênico — expressa a vocação profunda do anglicanismo como tradição de reconciliação. No primeiro, os anglicanos não foram apenas observadores, mas protagonistas de uma redescoberta: a liturgia como o coração pulsante da teologia, o lugar onde a oração se torna forma de conhecimento. No redescobrir da Eucaristia como centro da vida cristã, no uso das línguas vernáculas e na beleza sóbria da adoração comum, o anglicanismo reconheceu que reformar o culto é, em verdade, reformar o olhar. A liturgia, vivida como comunhão e não como performance, tornou-se o espaço onde o Espírito ensina a Igreja a ver o mundo transfigurado — um sacramento da presença divina no cotidiano da criação. Assim, o altar e a assembleia tornaram-se sinais visíveis daquilo que o anglicanismo sempre buscou: a unidade entre tradição e contemporaneidade, memória e promessa, beleza e simplicidade.


Do mesmo modo, no movimento ecumênico, a Comunhão Anglicana ofereceu ao cristianismo mundial uma espiritualidade de hospitalidade e escuta. Desde o Apelo de Lambeth de 1920, passando pelos diálogos da Comissão Internacional Anglicano-Católica (ARCIC) e pelos encontros com as Igrejas Ortodoxas e Luteranas, o anglicanismo procurou não impor uma identidade, mas criar espaços de comunhão. Em sua melhor forma, o ecumenismo anglicano é uma oração prolongada — o reconhecimento de que a unidade da Igreja não se constrói por uniformidade, mas pela partilha do mesmo Espírito que habita em diversas formas de fidelidade. Assim, tanto na renovação litúrgica quanto no diálogo ecumênico, o anglicanismo revela sua vocação mais íntima: ser um lugar onde a Igreja aprende novamente a ser una, santa e católica não por decreto, mas por amor; não pela força da doutrina, mas pela graça que reconcilia.


O Rev. Dr. Carlos Eduardo Calvani, em seu artigo A tensão entre Substância Católica e Princípio Protestante no Anglicanismo (Correlatio, n. 10, 2006), retoma a leitura do teólogo Paul Tillich — um dos maiores teólogos protestantes do século XX. Segundo Tillich, o anglicanismo respira na relação viva entre dois polos fundamentais da fé cristã. De um lado, a Substância Católica — continuidade sacramental, litúrgica e comunitária; de outro, o Princípio Protestante — a lembrança constante de que toda instituição, doutrina e rito permanecem sob o juízo de Deus. Tillich reconhece a sabedoria anglicana da via media: “um caminho entre a Igreja Romana, sem o autoritarismo do Papa, e o Protestantismo, evitando os elementos racionalistas, éticos e intelectuais da ortodoxia protestante.”


Para Paul Tillich, o protestantismo histórico — especialmente em suas expressões mais racionais e dogmáticas — “perdeu muito da substância da catolicidade, da liturgia e do simbolismo” (A Era Protestante, p. 188). Perdeu muito da densidade simbólica, a beleza litúrgica e a consciência sacramental da graça. É justamente por isso que ele admira a Igreja da Inglaterra, reconhecendo nela a capacidade singular de conservar o que o protestantismo continental abandonou. Contudo, Tillich é honesto e penetrante em sua crítica. Ele observa que o anglicanismo “nunca experimentou os extremos” — não percorreu as vias mais radicais da teologia protestante, como fizeram os alemães — e, por isso, sua via media tende mais à Substância Católica. Os britânicos, escreve ele, são um povo “mais bem-comportado”, que raramente vai aos extremos e prefere a sobriedade à confrontação teológica. Assim, o equilíbrio anglicano não nasce de uma síntese alcançada entre opostos, mas de um temperamento espiritual que preserva a continuidade da tradição sem romper com ela. O resultado, diz Tillich, é uma Igreja que “guarda muito do que o protestantismo perdeu”, uma forma de catolicidade reformada que une moderação e profundidade, graça e razão — um testemunho de fidelidade à grande tradição da Igreja, sem o peso do autoritarismo nem o deserto da abstração racionalista.


Essa leitura ajuda a entender por que o anglicanismo não se define simplesmente como “protestante”. Ele vive uma tensão criativa: conserva a substância católica sem abdicar da liberdade profética. Em vez de romper com as raízes, reforma-se a partir delas. Preserva sucessão episcopal, Credos Ecumênicos, Sacramentos e a centralidade da Santa Eucaristia; guarda a liturgia como expressão viva da graça. Desse modo, a via media é fidelidade dinâmica à fé católica primitiva, continuamente iluminada pela autocrítica evangélica.


O Rev. Dr. Carlos Eduardo Calvani, teólogo anglicano brasileiro, chega a uma conclusão semelhante. Em sua análise, a via média anglicana não representa um simples equilíbrio entre o Princípio Protestante e a Substância Católica; antes, nela predomina a substância católica. Essa predominância explica a impressionante capacidade do anglicanismo de manter unidas igrejas com ênfases tão diversas — do anglo-catolicismo ao evangelicalismo, do pentecostalismo litúrgico às expressões contemplativas. Essa força integradora não é fruto de neutralidade, mas de uma espiritualidade católica e pastoral que prefere integrar a diversidade a condená-la, escutar antes de excluir, caminhar em comunhão mesmo nas diferenças. Tillich e Calvani, cada um a seu modo, reconhecem que o anglicanismo é uma tradição de síntese viva — católica em substância, reformada em espírito e ecumênica em vocação.


É importante, ainda, destacar que, conforme o professor Carlos Eduardo Calvani, a via média anglicana não é uma linha de equilíbrio estático entre o Princípio Protestante e a Substância Católica, mas uma forma concreta e encarnada de viver a fé — uma espiritualidade em que a substância católica prevalece, oferecendo ao mundo uma experiência cristã que integra, escuta e reconcilia. Ele observa, ao final de seu consistente artigo teológico, com a clareza de quem lê o anglicanismo a partir de dentro: “Não tenho qualquer pretensão de dizer que o anglicanismo represente o equilíbrio entre Substância Católica e Princípio Protestante. Nesse ponto, concordo com Tillich: o extremo da experiência protestante nunca foi vivenciado no anglicanismo ou, quando o foi, as pessoas que o incorporaram não permaneceram na Igreja Anglicana por opção própria.”


Essas palavras são mais que uma constatação histórica; elas ressoam com a experiência presente da Comunhão Anglicana. Sempre que o anglicanismo tentou assimilar o extremo da experiência protestante — quando a liberdade se converteu em ideologia ou a leitura bíblica se isolou da razão e da tradição — o resultado foi o afastamento da comunhão. Isso ocorreu no passado e se repete em nossos dias, em certos movimentos de viés cismático e marcados por um evangelicalismo fundamentalista. Tais expressões não refletem a vitalidade do Evangelho, mas a sua distorção. O anglicanismo histórico em plena e permanente comunhão com a Sé de Cantuária, ao contrário, permanece fiel à sua vocação católica e reformada: uma fé que une contemplação e razão, tradição e liberdade, e que recusa toda forma de exclusão em nome do Cristo que reconcilia todas as coisas.


O anglicanismo e a superação do binarismo


Ir além do binarismo “ou católico romano ou protestante” é, antes de tudo, recuperar a gramática mais larga da catolicidade. A Igreja de Cristo nunca coube num único adjetivo ocidental. No Oriente, as Igrejas Ortodoxas Orientais — Copta, Armênia Apostólica, Siríaca Ortodoxa, Etíope Tewahedo (e Eritreia, Malankara) — conservam, com vigor admirável, fé apostólica, vida sacramental e sucessão episcopal, ainda que não estejam em comunhão com Roma nem tenham nascido da Reforma protestante. A tradição bizantina das Igrejas Ortodoxas (gregas, eslavas, romenas, entre outras) testemunha a mesma continuidade: credos ecumênicos, liturgia como teologia em ato, o episcopado como sinal de unidade. E a própria Igreja do Oriente (Assíria) — herdeira antiquíssima de Antioquia e Edessa — preserva uma catolicidade distinta, forjada muito antes das disputas confessionais do Ocidente. Esses corpos eclesiais lembram que “catolicidade” significa plenitude e comunhão na fé apostólica, não uniformidade de rito, cultura ou jurisdição.


Também no Ocidente encontramos sinais que desafiam a lógica estreita do binarismo eclesial. As Igrejas Velho-Católicas da União de Utrecht, com as quais as Igrejas da Comunhão Anglicana estão em plena comunhão, testemunham uma catolicidade viva que não depende da obediência a Roma, mas da fidelidade à fé apostólica e ao consenso dos primeiros séculos. Da mesma forma, a Igreja Católica Independente das Filipinas e a Igreja Mar Thoma da Índia expressam, cada uma em seu contexto, a mesma herança de fé: católicas em substância, reformadas em espírito, enraizadas na sucessão apostólica e comprometidas com o Evangelho de Cristo.


Essas Igrejas, embora diversas em cultura e história, participam da comunhão mais ampla da Igreja Uma, Santa, Católica e Apostólica . Seus bispos tomam parte da Conferência de Lambeth, sinal visível da catolicidade compartilhada que ultrapassa fronteiras confessionais. Elas lembram à Igreja Ocidental que a comunhão cristã é mais vasta que os limites da Igreja Romana ou da Reforma Protestante. A catolicidade, nesse sentido, é uma vocação à unidade reconciliada — uma harmonia de muitas vozes que confessam a mesma fé.


É nesse horizonte que o anglicanismo se compreende como católico reformado. Reformado — porque se submeteu à crítica evangélica para purificar abusos e recentrar a vida na Palavra; católico — porque nunca entendeu a reforma como ruptura da continuidade apostólica, mas como retorno às fontes, preservando credos, sacramentos, o ministério episcopal e uma liturgia que dá forma ao discipulado.


Evolução Teológica e Doutrinal


Nossa identidade doutrinal e litúrgica enraíza-se na Igreja dos primeiros séculos: Escrituras, Patrística, Concílios Ecumênicos e Credos. Porque é identidade viva, recebe também o sopro das escolas teológicas contemporâneas, do movimento litúrgico, do movimento ecumênico e das culturas em que a Comunhão Anglicana se encarna.


Do mesmo modo que lemos as Escrituras com os recursos da crítica literária e do método histórico-crítico, também somos chamados a ler, com igual discernimento hermenêutico, os formulários doutrinários históricos da Igreja da Inglaterra — o Prefácio à Declaração de Assentimento, os Trinta e Nove Artigos da Religião, o Livro de Oração Comum de 1662, o Ordinal e o Catecismo. Esses textos, nascidos no contexto vibrante e conflituoso da Reforma europeia, constituem parte essencial do nosso patrimônio teológico, litúrgico e espiritual. Contudo, reconhecemos que eles devem ser lidos à luz de seu tempo e com o coração voltado à vida atual da Igreja. Não nos cabe importar os conflitos do século XVI nem tratar tais textos como verdades absolutas, mas recebê-los como testemunhos vivos da fé, frutos da busca sincera de homens e mulheres que, em meio às tensões de seu tempo, procuraram permanecer fiéis ao Evangelho e à comunhão da Igreja una, santa, católica e apostólica.


“IEAB, muitas faces, muitos jeitos, um só Cristo”


A identidade anglicana é uma tapeçaria: fé católica primitiva e reforma evangélica, entrelaçadas. Essa dualidade fortalece a tradição e torna o anglicanismo interlocutor vital no diálogo e na cooperação entre Igrejas. Como disse Roger Scruton, é “parte da genialidade do Anglicanismo ter sido capaz de reter anglo-católicos e evangélicos dentro de uma única ‘igreja ampla’”. A IEAB encarna essa amplitude — “IEAB, muitas faces, muitos jeitos, um só Cristo” (Sínodo 2018) —, evitando reducionismos e preferindo um caminho que valoriza a diversidade e o engajamento profundo com as dimensões sociais, culturais e teológicas da vida.


Após o Sínodo da IEAB de 2018, nossa Província iniciou um processo profundo de escuta e discernimento comunitário para a construção de um novo planejamento pastoral provincial. Nesse processo, mais uma vez emergiu com força a pergunta fundamental: Quem somos nós? No capítulo dedicado à identidade, o texto do planejamento provincial afirma:


“A identidade anglicana foi se construindo historicamente. O anglicano traz em sua identidade um ser católico, evangélico e protestante ao mesmo tempo.”


Trata-se de afirmação, simples e teologicamente densa, expressa a amplitude e a beleza da tradição anglicana — uma identidade moldada pelo tempo, pela oração e pela tensão criativa entre a continuidade católica e o impulso reformador.


Essa identidade singular, com seu engajamento na teologia da libertação, nas Cinco Marcas da Missão, na ordenação de mulheres, na plena inclusão das pessoas LGBTQIA+, no cuidado com a criação e na justiça ambiental, e no discipulado intencional, expressa o compromisso de ser uma Igreja segura, ampla, inclusiva e evangélica — plenamente católica e reformada. É uma tradição litúrgica, mística e intelectualmente aberta, capaz de responder com elasticidade e fidelidade aos diversos contextos. A IEAB é compreensiva e diversa: dioceses, paróquias e missões trazem sua riqueza cultural e espiritual, adensando o nosso ethos episcopal anglicano no Brasil — uma Igreja liderada episcopalmente e governada sinodalmente.


Fiel às raízes históricas e atenta aos sinais da teologia contemporânea, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, em plena e permanente comunhão com a Sé de Cantuária, com os Instrumentos de Comunhão: Conferência de Lambeth, o Conselho Consultivo Anglicano (ACC), e o encontro dos bispos e bispas Primazes, e com as igrejas irmãs da Comunhão Anglicana, reconhece-se como parte da Igreja Católica de Jesus Cristo no Brasil. E, por ser parte de uma Comunhão ampla de Igrejas nacionais e regionais, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil reconhece-se enviada na Missio Dei — participante da própria missão de Deus no mundo. Ao longo de mais de um século de presença em solo brasileiro, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil tem buscado, com humildade e fidelidade, a unidade da Igreja Católica de Cristo participando ativamente do movimento ecumênico, anunciando as Boas-Novas de Jesus Cristo, em meio às transformações de cada tempo. Permanece, assim, firmemente enraizada — ontologicamente — na forma católica reformada de ser, que se exprime em linguagens sempre novas, renovando-se sem perder a substância Católica que a sustenta.


Posfácio – Memória e Vocação


Conheci a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) por meio da literatura, em meados da década de 1980, quando eu tinha dezessete anos, lendo a revista Ultimato. Naquele tempo, um clérigo episcopal da Diocese do Recife escrevia com frequência nas páginas da revista, e suas reflexões despertaram em mim uma profunda curiosidade e simpatia por essa tradição de fé.


Movido por esse interesse, escrevi uma carta para a sede da Igreja, em Porto Alegre, e, para minha surpresa, recebi uma resposta afetuosa do então secretário-geral, Rev. Jubal Neves, que me presenteou com uma assinatura do jornal da Igreja, “O Estandarte Cristão”. Guardo esse gesto até hoje como um dos primeiros sinais da hospitalidade anglicana — simples, acolhedora e profundamente humana.


Em 1990, ao mudar-me para São Paulo, pude finalmente conhecer a IEAB não apenas pelas palavras impressas, mas pela experiência viva da comunhão. Parafraseando o livro de Jó — “Antes eu te conhecia só de ouvir falar, mas agora meus olhos te veem” — encontrei a Igreja e fui recebido com ternura e hospitalidade na Paróquia da Santa Cruz, pelo então pároco Rev. Hitoshi Ito, pelo Rev. Yoshiro Yoshizawa, pela comunidade e pelo nosso querido bispo diocesano, Dom Glauco Soares de Lima.


Recordo-me com nitidez da noite fria de segunda-feira, 23 de maio de 1990, quando a Catedral da Sé acolheu a celebração ecumênica de ação de graças pelo centenário da IEAB, durante a visita histórica do Arcebispo de Cantuária, Robert Runcie. A liturgia, preparada pela CONAC, era rica e serena; a música, conduzida pelo grupo Gente de Casa, envolvia o templo com alegria suave e reverência profunda.


A imensa nave da Sé estava repleta de pessoas, bispos, clérigos, representantes ecumênicos. Houve procissão solene, cânticos, gestos de comunhão. O Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns acolheu o Arcebispo Runcie como “mensageiro de Deus, apóstolo da paz, amigo dos pobres e defensor dos direitos humanos.”


Sentado entre a assembleia, eu escutava e orava em silêncio. Aquele momento, mais do que uma celebração, foi para mim uma epifania. No íntimo do meu coração, tomei a decisão serena e definitiva: tornar-me anglicano.


Seguindo o exemplo do Irmão Roger de Taizé, cuja espiritualidade tanto me inspirava desde a adolescência, fiz essa escolha “sem ruptura de comunhão com ninguém.” Minhas raízes permaneceram profundamente alicerçadas no mistério da fé católica; contudo, ao me tornar anglicano, percebi que não estava abandonando nada, mas abraçando mais plenamente o todo da fé cristã — aquela Igreja que, nas palavras do Livro de Oração Comum da IEAB (1930), se define como “católica para toda a verdade de Deus e protestante contra todos os erros humanos.” E na revisão litúrgica posterior, no LOC de 1984, essa mesma intuição foi expressa de modo ainda mais maduro e equilibrado: “católica que é, e deve ser continuamente reformada, sem perder, contudo, os valores perenes e fundamentais da tradição cristã.”


Essas duas formulações, separadas por décadas, revelam uma mesma alma — a consciência de que a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e a Comunhão Anglicana é chamada a conservar a plenitude católica da fé, deixando-se continuamente reformar pelo sopro do Espírito.


Naquela noite fria de maio, compreendi que minha jornada espiritual não exigia rompimentos, mas integrações; não renúncias, mas o caminho da inteireza. Encontrei minha identidade anglicana como um espaço de reconciliação interior, onde a fé católica das minhas origens se encontrava, sem contradição, com o sopro renovador da Reforma.


Na Comunhão Anglicana, redescobri o sentido mais profundo da palavra católico: um coração capaz de conter o todo, de reunir em si o antigo e o novo, o altar e o púlpito, a tradição e a esperança.


Recordo-me de ter pensado na parábola do Evangelho sobre a pessoa que encontra um tesouro escondido no campo e, tomada de alegria, vende tudo o que tem para adquirir aquela pérola de grande valor. Assim me senti ao encontrar o anglicanismo: uma fé onde a razão e o coração se abraçam, e onde a graça tem rosto humano.


Ao longo desses trinta e cinco anos de caminhada, vivi incontáveis bênçãos, alegrias e momentos de profunda felicidade — mas também enfrentei decepções e dores. Ainda assim, posso dizer com serenidade, fazendo minhas as palavras de Édith Piaf: “Non, je ne regrette rien.” — “Não, eu não me arrependo de nada... Nem do bem que me fizeram, nem do mal; tudo isso já não importa mais. Com minhas lembranças, acendo o fogo e recomeço do zero.”


Durante essas três décadas de vivência episcopal anglicana, a pergunta pela identidade sempre retornou: Quem somos nós? Li muitos livros, participei de cursos, fiz terapia, e tive a alegria de realizar uma especialização em Anglicanismo nos anos 1990, no Centro de Estudos da Comunhão Anglicana, em Birmingham (Reino Unido). Essa formação ampliou meu horizonte teológico e espiritual, mas aprendi que nada se compara à experiência encarnada da fé — o embodiment diário de ser Igreja em comunidade de pessoas discipulas de Jesus Cristo. É na vida compartilhada, nas alegrias e feridas do corpo eclesial, nas orações ditas e nos silêncios escutados, que a teologia se torna carne e o anglicanismo revela sua verdade mais profunda: a fé que se faz comunhão.


Em 2021, comecei a pensar que talvez pudesse oferecer, a partir do meu lugar e da minha experiência pastoral, uma contribuição sobre esse tema tão essencial. Assim nasceu este ensaio — uma compilação de várias fontes, memórias, estudos e orações — enquanto me preparava para assumir o ministério episcopal na Diocese Anglicana de São Paulo, em outubro daquele ano. Vivíamos ainda os desafios da pandemia e, dentro da Diocese, buscávamos discernir caminhos de cura e reconciliação após tempos difíceis. Ao mesmo tempo, experimentávamos uma vitalidade espiritual surpreendente — gestos de fé, solidariedade, oração e criatividade, sinais de que a Ruah Divina continua a soprar sobre nós.


Durante a Conferência de Lambeth de 2022, um dos grandes temas de reflexão foi justamente a identidade anglicana. Ali, entre tantas vozes e culturas diferentes, pude ver que nossa diversidade não é fragmentação, mas dom do Espírito. Somos diferentes, mas partilhamos o mesmo pão e o mesmo cálice eucarístico, e a mesma esperança. No ano seguinte, durante o curso para novos bispos e bispas em Cantuária, voltamos novamente a esse tema. Recordo-me de dizer a um colega: “Nós, anglicanos, temos um problema saudável com a identidade.” Desde que me tornei anglicano, percebo que, de tempos em tempos, o Espírito nos chama a revisitar o que significa ser Igreja — a redescobrir as fontes do nosso chamado e o lugar da graça em nossa tradição.


Talvez seja justamente essa abertura, fruto da substância católica de nossa fé e da ação incessante do Espírito que renova e recria todas as coisas, que faz do anglicanismo uma tradição viva, dialogal e em permanente discernimento.


Muitas pessoas contribuíram para a formação e o amadurecimento deste singelo trabalho: professores e mestras, irmãos e irmãs das comunidades onde servi, teólogos e teólogas de perto e de longe. A todas e todos, minha sincera gratidão.


Minha intenção ao reunir este ensaio é oferecer às comunidades da DASP, ao clero, às lideranças do laicato, às pessoas seminaristas e a todas as que se interessem por nossa tradição, uma introdução simples e honesta — acompanhada de uma bibliografia básica sobre o tema. Que este texto desperte o desejo de conhecer mais profundamente a beleza e a riqueza espiritual do anglicanismo, porque, como bem disse Santo Agostinho, “só se ama aquilo que se conhece.”


E, a todas as pessoas que me perguntam o que é o anglicanismo, costumo responder com as palavras do Evangelho de João (1.39):


“Venha e veja.”


+ Francisco Cézar Fernandes Alves, 7° bispo da Diocese Anglicana de São Paulo (DASP – IEAB), Comunhão Anglicana



Referências e Fontes de Informações:


1. Roger Scruton, "Our Church: A Personal History of the Church of England";

2. Bispo John Cosin (1594 – 1672), "A Religião, Disciplina e Ritos da Igreja Anglicana";

3. Igrejas que estão em comunhão plena com Comunhão Anglicana; (https://www.anglicancommunion.org/ecumenism/churches-in-communion.aspx)

3. O jeito de ser dos anglicanos- John Baycroft; (https://share.google/qfHDXlmuAk4huUvTE)

4) Os chamados de Lambeth; (https://share.google/BhSdvbQUelQzcN60O)

6) Em que os anglicanos acreditam, (https://share.google/ocsNu7S8976IXbrDW)

7. Igrejas Membros da Comunhão Anglicana; (https://www.anglicancommunion.org/structures/member-churches.aspx)

9. Igreja da Irlanda - Ensino da Igreja; (https://www.churchofireland.org/our-faith/what-we-believe)

11. Anglicanismo na IEAB; (https://ieab.org.br/anglicanismo/)

12. Livro "Reformed Catholicke" por William Perkins; Amazon (https://amz.onl/jlANI4N, https://amz.onl/4tedoe6)

13. Michael Allen, Scott R. Swain, Felipe Sabino de Araújo Neto - "Catolicidade reformada, Editora Monergismo

14. Stephen Neill - "El Anglicanismo";

15. John Moorman - "A History of the Church of England";

16. Jaci Maraschin - “O espelho e a transparência: O Credo Niceno-constantinopolitano e a teologia latino-americana e a teologia latino-americana”;

17. Carlos Eduardo Calvani - A tensão entre Substância Católica e Princípio Protestante no Anglicanismo (Revista Eletrônica Correlatio n. 10 - Novembro de 2006).

18. Unidos no diálogo – Anglicanos e Católicos;

19. Carmen Kawano – Sumio Takatsu, vida e obra;

20. Livro de Oração Comum da IEAB, edição de 1984;

21. Anglicanism, a global comunion;

22. A natureza da fé crista, uma declaração e exposição da câmara dos bispos do sínodo Geral da Igreja da Inglaterra;

23. Vera Lucia Simões de Oliveira, historia do anglicanismos na Inglaterra;

24. Willianm Gibson, The Church of England;

25. John Jewel, Na Apology of The Church of England;

26. Defending the Faith, John Jewel and the Elizabethan Church;

26. Rowan Williams, Anglican Identities.

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