Escrito por Christopher Cocksworth*
“Uma espada há de atravessar-lhe a alma” (Lucas 2.35), disse Simeão para Maria. Há muitas camadas na assustadora profecia de Simeão. Será que uma delas é a maneira com que os seguidores de seu filho permitiram que sua mãe se tornasse na origem de divisões na vida da igreja através dos séculos e continentes?
Em vez de seguir o exemplo do discípulo amado, alguns não levaram Maria para seus lares e corações. Em vez de engrandecer “Deus [nosso] salvador” (Lucas 1.46) com Maria, e exaltar a força e misericórdia de Deus, alguns levaram Maria a um lugar que arrisca obscurecer a graça ilimitada de Deus que ela encontrou em seu filho. Em vez de reconhecer com Isabel que Maria é “bendita entre as mulheres” (Lucas 1.42), alguns a negligenciaram e até mesmo disseram coisas duras sobre ela. Em vez de celebrarem com Isabel que Maria recebeu a dádiva de Deus em seu Filho por meio de sua vontade duramente conquistada em acreditar, pois “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque vai acontecer o que o Senhor lhe prometeu” (Lucas 1.45), alguns tentaram encontrar o mérito de Maria em outros lugares que não a humildade de seu coração e a disposição para receber a escolha de Deus “antes da criação do mundo” (Efésios 1.4).
O reconhecimento contido mas real do anglicanismo do lugar de Maria nos propósitos de Deus e na via da igreja nos proporciona as sementes para uma abordagem à Maria que une os cristãos e cura nossas divisões. Uma igreja credal afirma o significado único no esquema da salvação. Jesus “encarnou, por obra do Espírito Santo, da Virgem Maria”, como dizemos no Credo Niceno. Ele “nasceu da Virgem Maria”, como proclamamos no Credo Apostólico. É por isso que Maria é corretamente chamada de Theotokos, portadora de Deus. Uma igreja litúrgica se lembra a vida de Maria – sua concepção e nascimento, a Anunciação do Anjo e a Visitação de sua prima – e regozija-se com ela de que Deus “realizou grandes obras” (Lucas 1.49). É por isso que chamamos esta mulher de “santa” (Lucas 1.49).
Uma igreja bíblica proporcionará Maria de acordo com as Escrituras, com a insistência de Paulo de que Cristo “nasceu de uma mulher [judia]” (Gálatas 4.4), com o testemunho de João, de que ela era fiel na morte de seu filho assim como em sua vida (João 19.25-27) e com a evidência de Lucas de que depois da ressurreição de Jesus ela foi citada entre os apóstolos, “e eram assíduos na oração” (Atos 1.14), e fazia o que Jesus lhes pediam, esperando para que “sejam revestidos do poder do alto” (Lucas 24.49). É por isso que devemos prestar atenção nas palavras de Maria sobre seu filho, “Façam o que ele mandar” (João 2.5). Pois o que é o anglicanismo se não credal, litúrgica e bíblica? Esta é a base de nosso ser, semper reformanda, sempre humilde para ser reformada pelas Escrituras e os credos, e o evangelho que eles falam são expressos por meio da autêntica tradição litúrgica.
Há vários sinais de que a igreja de Deus está preparada para se unir de maneira surpreendente ao redor de um amor comum por Maria. O ensinamento Católico Romano contemporâneo provavelmente não é muito distante da forma de devoção à Maria, cara ao coração de Lutero, que a vê mais apontando em direção a seu filho do que a si mesma. Evangélicos, geralmente mulheres, estão encontrando em Maria uma fonte de inspiração como alguém que exemplifica a dinâmica da graça e demonstra o chamado a proclamar o evangelho para a família e nas ruas, que está no centro da experiência e do compromisso evangélicos. Carismáticos são atraídos a Maria como quem nos mostra como receber o Espírito em abundância, a ficar próximo de Cristo em todas as condições da vida, a ser preenchido pelo Espírito no Pentecostes, e a ir às ruas manifestar a realidade do reino de Deus na terra. Cristãos com um forte instinto sociopolítico encontram a visão profética de Maria – de um mundo transformado pela regra justa de Deus que derruba os tronos do poder abusivo e ergue os pobres e marginalizados – de um manifesto de esperança. Cristãs feministas veem em Maria a personificação de uma agência inspirada pelo Espírito e uma afirmação da necessidade da feminilidade nos propósitos de Deus, pois sem Maria não haveria Jesus. Para além da igreja, outras comunidades de fé, dos muçulmanos a yazidi, dão a Maria elogios e desafiam o povo de seu filho e sua cruz a considerá-la bem.
Talvez, porém, há um lugar para o Anglicanismo, com seu chamado histórico de manter dentro de sua própria vida os dons preciosos da fé e o trabalho mais amplo da graça, fazer uma nova intervenção ecumênica. E se era para os anglicanos encontrarem maneiras de clamar as igrejas a reconhecerem isso, de que quaisquer que tenham sido as tensões sobre nossas análises sobre ela, nós estamos unidos com Maria, pois ela é, nas palavras frequentemente repetidas de João, “a mãe do Senhor”. E se deveríamos oferecer a todas as igrejas – todos os amados discípulos do mundo – que ficassem juntos com ela na cruz, para que em vez de dispersar nossas próprias casas, formarmos, com Maria, uma casa e lar?
É claro, para ter qualquer credibilidade para tomar essa atitude ousada entre todas as igrejas, nós precisaríamos, como anglicanos, determinar os passos entre as igrejas de nossa Comunhão (e dentro delas) para curar as feridas e aliviar as tensões de nossa vida. Nós precisaríamos ser um pouco como Maria, prontos para colocar todas as nossas energias para receber Jesus Cristo e disponibilizar seu ministério ao mundo. A Quaresma é uma boa época para fazer isso, um bom tempo para abrir espaço ao Espírito de Deus – o Espírito que ofuscou a Maria – para moldar dentro e entre nós a virtude – a santidade, se eu puder dizer assim – do reino de Deus. Estas virtudes começam em acreditar na realização da palavra de Deus e dizer, “Eu sou uma serva de Deus” (Lucas 1.38). Elas levam a essas características, a essas bem-aventuranças – da vida dos discípulos que Jesus nos ensinou. São coisas que geralmente me pergunto se ele viu primeiro na vida de sua mãe – pobreza de espírito, mansidão da alma, pureza do coração, anseio por justiça, trabalho pela paz.
Estes caminhos do reino de Deus nos levarão aos ensinamentos e orações de Jesus na véspera de sua morte, para que fôssemos santificados na verdade para que sejamos um com nele. Eles nos levarão mais longe, por todo o caminho até a cruz, quando Jesus disse “está completado” (João 19.30), sabendo que esta igreja foi criada na casa do discípulo amado com Maria, sua mãe.
Eles nos levarão ao Pentecostes para que possamos escutar “um som, como de um vento impetuoso” que encheu “toda a casa” (Atos 2.2) da igreja de Deus e nos impulsiona para a cidade e para os confins da terra para falar em várias línguas as mesmas boas novas que Deus criou Jesus, “nasceu de uma mulher” (Gálatas 4.4), “Senhor e Cristo” (Atos 2.36). Eles nos levarão mais próximos do coração de Maria, e às feridas da espada da divisão no corpo de seu filho que perfuram sua alma e motivam sua oração.
*Sobre o Autor: O Revmo. Dr. Christopher Cocksworth é Deão de Windsor.
O texto “Mary, Mother of Unity for the 21ST Century” foi publicado no site Covenant no dia 19 de março de 2024. Traduzido em português e publicado neste site com autorização.
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